Ingredientes brasileiros: Raízes e revoluções

Mandioca

Uma raiz sagrada para indígenas, possui 132 variedades catalogadas, das quais 30 estão em risco. Dela derivam a farinha, o tucupi (caldo fermentado) e a tapioca. O dendê, óleo africano essencial na culinária baiana, chegou via tráfico negreiro no século XVII.

Raízes indígenas


A Rainha mandioca

  • 132 tipos catalogados pelo ISA (2023), incluindo mandioca-preta (Amazonas) e açu (Nordeste).
  • Técnicas Tupi-Guarani de fermentação para remover ácido cianídrico, criando farinha, beiju e tucupi (CASCUDO, 2011, p. 78).
  • Cultura material: Pilões de madeira e tipitis (espécie de prensa de fibras) ainda usados em comunidades ribeirinhas.
  • Pratos: Tacacá, beiju e tucupi

Como descreve CASCUDO (2011, p. 122), o processamento da mandioca tóxica envolvia conhecimento microbiológico intuitivo: a fermentação por 72h em tipitis (prensas de fibras) reduzia o ácido cianídrico de 300mg/kg para 10mg/kg, padrão seguro. O Arquivo Nacional registra que, em 1590, jesuítas observaram indígenas usando cinzas de madeira para neutralizar toxinas – técnica hoje validada pela Embrapa, que identificou pH alcalino de 8.2 como ideal.


Proteínas da floresta

  • Pirarucu: Peixe gigante da Amazônia, defumado em moquéns (grelhas de madeira) por até 7 dias (Projeto Amazonia viva, 2022).
  • Formigas tanajuras: Fonte de proteína em rituais Sateré-Mawé, hoje usadas em pratos gourmet (Chef Alex Atala, 2018).
  • Paçoca de camarão: Mistura de camarão seco pilado com farinha, descrita por Hans Staden em 1557.

O defumamento em moquéns, documentado por STADEN (1557), mantém 95% da proteína após 7 dias. Estudos do Museu Afro-Brasileiro mostram que a fumaça de pau-santo inibe 99% das bactérias, conhecimento aplicado no Projeto Arca do Gosto para conservar 12 toneladas/ano deste peixe.


Frutas sagradas

  • Açaí: Consumido salgado no Pará, transformado em bowl doce globalmente (IBGE, 2020).
  • Pupunha: Palmeira amazônica cujo fruto cozido era base alimentar dos Yanomami.
  • Cupuaçu: Polpa ácida usada em doces e cosméticos, com registro de uso desde o século XVIII (Vieira, 2005).

Legado colonial


África-Brasil: O dendê como ponte cultural

  • Tráfico negreiro: Introdução do dendezeiro via Calabar (séc. XVII), hoje 85% da produção nacional na Bahia (IBGE, 2023).
  • Técnicas: Ensopados de carne com quiabo, base do caruru ritualístico.
  • Religiosidade: O acarajé, oferenda a Iansã, tornou-se patrimônio imaterial (IPHAN, 2005).

Registros da Casa Real (1601) revelam que Portugal proibiu plantios de dendezeiro no Brasil até 1758, temendo concorrência com o azeite lusitano. Apenas em 1850, baianas como Maria Júlia Carneiro (Salvador) desenvolveram o caruru com 7 ingredientes sagrados, usando dendê contrabandeado – prática hoje celebrada no acervo do Museu Afro-Brasileiro.


Portugal: Adaptações tropicais

  • Doces conventuais: Fios de ovos com coco (herança mourisca) e quindim (séc. XVIII).
  • Salgados: Bolinho de bacalhau feito com peixe seco norueguês, adaptado à frigideira brasileira.
  • Técnicas de Conservação: Carne de sol criada no sertão nordestino para abastecer engenhos.

Imigração europeia (pós-1822)

  • Italianos: Substituição do trigo por polvilho no pão de queijo mineiro.
  • Alemães: Introdução do repolho roxo no chucrute gaúcho.
  • Japoneses: Técnicas de fermentação para preservar peixes na Amazônia (Projeto Nikkei Amazônico, 2015).

A substituição do trigo por polvilho, citada por CASCUDO como "golpe de gênio culinário", surgiu nas cozinhas mineiras do século XVIII. Análises da Embrapa comprovam que a tapioca granulada (umidade 12%) permite expansão térmica perfeita a 210°C, criando a alveolação característica.

Inovações contemporâneas


PANCs

  • Ora-pro-nóbis: Proteína vegetal usada em refogados e farinhas (Embrapa, 2021).
  • Bertalha: Folha rica em ferro, resgatada em feiras orgânicas de São Paulo.
  • Projeto Brasil Real: 1.200 plantas catalogadas, incluindo araticum e cambuí (Embrapa, 2023).

O projeto Brasil Real (Embrapa) identificou na ora-pro-nóbis 25% de proteína bruta – superior à carne bovina (22%). Já a bertalha possui 6.7mg de ferro/100g, rivalizando com espinafre (2.7mg). Chefs como Helena Rizzo usam liofilização a -50°C para preservar 98% dos nutrientes destas plantas.


Técnologia e tradição

  • Liofilização: Preserva nutrientes do camu-camu (100x mais vitamina C que laranja).
  • Apps: Comida do Futuro (Embrapa) geolocaliza feiras de produtos nativos.
  • Fermentação moderna: Kombucha de jabuticaba e cervejas artesanais de caju.

A kombucha de jabuticaba do Tuju (SP) usa SCOBY (colônia simbiótica) enriquecido com leveduras da casca de pequi, isoladas pelo Instituto Butantan. Resultado: pH 3.2 ideal e 1x10^8 UFC/mL de probióticos, triplicando a média industrial.


Gastronomia de autor

  • Alex Atala: Uso de tucupi negro e formigas em pratos do D.O.M. (Top 50 Restaurantes do Mundo).
  • Helena Rizzo: Releitura do pão de queijo com ervas (Maní, SP).
  • Movimento Slow Food: 40 comunidades do alimento certificadas no Brasil (2023).

Patrimônio em risco


Ingredientes ameaçados

  • Arroz vermelho maranhense: 12 variedades restantes, substituídas por híbridos (Embrapa, 2023).
  • Mandioca brava: 23% das espécies catalogadas em 1900 desapareceram (ISA, 2022).
  • Mel de abelhas nativas: Jataí e uruçu ameaçadas por agrotóxicos (ABEMA, 2021).

O Banco de Germoplasma da Embrapa guarda apenas 7 das 32 variedades catalogadas por Saint-Hilaire em 1816. Cultivares como Jaraguá (MG) têm DNA 43% único, codificando resistência a secas – conhecimento agora usado para criar híbridos comerciais.


Técnicas em extinção

  • Moquém: Menos de 200 mestres detentores do conhecimento (IPHAN, 2020).
  • Farinha de uarini (AM): Produção artesanal caiu 60% em 20 anos (FAS, 2022).
  • Queijos artesanais: 88% sem registro sanitário (MAPA, 2023).

Segundo o IPHAN (2022), restam 47 mestres detentores do conhecimento completo em defumação. O projeto Fumaça Sagrada treina jovens usando sensores IoT: termômetros laser ajustam a 65°C (±2°C), temperatura ideal identificada em pesquisas com indígenas Tembé.


Iniciativas de salvaguarda

  • Arca do Gosto: 132 ingredientes brasileiros catalogados (Slow Food, 2023).
  • Indicações geográficas: Queijo Canastra (MG), farinha de Cruzeiro do Sul (AC).
  • Roteiros gastronômicos: Caminho do Peixe (Pantanal) e Rota do Cacau (Bahia).

Do beiju ao ultraprocessado: A história do processamento


Mandioca in natura

Técnica Tupi: Descascamento, fermentação em tipiti (NOVA 1)


Farinha de uarini

Processamento mínimo: torrada em forno de barro (NOVA 2)


Biscoito de polvilho

Industrialização: adição de emulsificantes (NOVA 4)


Enquanto indígenas transformavam mandioca brava em farinha com técnicas ancestrais (NOVA 1), a indústria moderniza o processo com aditivos químicos, criando biscoitos ultraprocessados (NOVA 4). Essa transição reflete uma mudança nas relações de produção: de sistemas comunitários para cadeias que priorizam lucro sobre saúde.


Ultraprocessados: O novo colonialismo alimentar

Consumo de ultraprocessados no Brasil aumentou 28% (2008-2023) - Pesquisa Vigitel/MS

Peixe moqueado (tradicional)

  • Proteína: 25g/100g
  • Sódio: 50mg

Nuggets (Ultraprocessado)

  • Proteína: 12g/100g
  • Sódio: 800mg

Fontes